O estado de emergência decretado em todo o território (entre o dia 19 de março e o 2 de abril de 2020), através do Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de março, e renovado pelo Decreto do Presidente da Repúblican.º17-A/2020, de 2 de abril(entre o dia 2 de abril e 17 de abril), legitimou a possibilidade de adoção de um conjunto de medidas restritivas dos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.

I. Diplomas normativos relevantes: Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de março, Decreto n.º 2-A/2020, de 20 de março, Decreto do Presidente da República nº 17-A/2020, de 2 de abril e Decreto n.º 2-B/2020, de 2 de abril

  • O Decreto do Presidente da República n.º 14-A/2020, de 18 de março, elencou um conjunto de medidas excecionais restritivas e suspensivas dos direitos de circulação e as liberdades económicas dos cidadãos que foram reiteradas e reforçadas com a renovação do estado de emergência, através do Decreto do Presidente da República n.º17-A/2020, de 2 de abril. A saber:

i) Direito de deslocação e fixação em qualquer parte do território nacional: as autoridades públicas podem interditar deslocações e a permanência injustificada de cidadãos na via pública, o confinamento compulsivo, o estabelecimento de cercas sanitárias;

ii) Circulação internacional: podem ser impostos controlos fronteiriços de pessoas e bens, incluindo controlos sanitários e fitossanitários em portos e aeroportos;

iii) Direito de reunião e manifestação: as autoridades públicas podem limitar ou proibir a realização de reuniões ou manifestações;

iv) Liberdade de culto (na sua dimensão coletiva): as autoridades públicas podem limitar ou proibir a realização de celebrações de cariz religioso e de outros eventos que impliquem aglomeração de pessoas;

v) Direito dos trabalhadores: as autoridades públicas podem ordenar que os trabalhadores que desempenhem a sua atividade em sectores vitais para a saúde, defesa, proteção e segurança das pessoas e para o funcionamento da economia, se apresentem ao serviço e desempenhem a sua atividade em condições excecionais. Estabelece, ainda, a suspensão do direito à greve sempre e quando possa comprometer infraestruturas e unidades essenciais à população;

vi) Propriedade e iniciativa económica privada: pode ter lugar a requisição civil de empresas e do seu património por parte das autoridades públicas, bem como a obrigatoriedade de abertura, laboração e funcionamento de empresas e estabelecimentos ou a imposição de limitações, restrições e encerramento da atividade;

vii) Liberdade de aprender e ensinar: podem limitadas as aulas presenciais e imposto o ensino à distância por meios telemáticos (com recurso à internet ou televisão), o adiamento ou prolongamento de períodos letivos, ajustamentos nos métodos de avaliação e suspensão ou recalendarização de provas ou abertura de ano letivo e ajustes no modelo de acesso ao ensino superior;

viii) Direito à proteção de dados pessoais: as autoridades competentes podem determinar que as operadoras de telecomunicações enviem aos Clientes alertas da Direção-Geral da Saúde;

ix) Direito de resistência: reforço da proibição de qualquer ato de resistência ativa ou passiva às ordens das autoridades públicas, o qual será cominado, nos termos da lei, como crime de desobediência;

  • O referido Decreto veio ainda introduzir a possibilidade de adoção de medidas excecionais e urgentes de proteção dos cidadãos em execução de decisão condenatória privativa da liberdade, bem como do pessoal que exerce funções nos estabelecimentos prisionais.
  • Em 3 de abril de 2020, entrou em vigor o Decreto n.º 2-B/2020, de 2 de abril, o qual veio regulamentar a prorrogação do estado de emergência decretado pelo Presidente da República e procedeu à revogação do Decreto n.º 2-A/2020, de 20 de março, sobre a execução da declaração do estado de emergência.
  • Em termos gerais, o Decreto da Presidência do Conselho de Ministros veio concretizar e densificar as medidas excecionais e temporárias estabelecidas nos dois Decretos Presidenciais:

i) Dever de confinamento obrigatório dos doentes com COVID-19, dos infetados com SARS-Cov2 e dos cidadãos em vigilância ativa;

ii) Dever especial de proteção dos cidadãos maiores de 70 anos e dos grupos considerados de risco (imunodeprimidos e os portadores de doença crónica), sendo proibida a sua circulação nos espaços e vias públicas, ou espaços equiparados, à exceção dos casos expressamente previstos (por exemplo, deslocações por motivos de saúde, a postos de correios, agências bancárias e de seguros e deslocações de curta duração para efeitos de atividade física ou passeio dos animais de companhia) e nos casos devidamente justificados;

iii) Dever geral de recolhimento obrigatório de todos cidadãos que não se enquadram nos pontos i) e ii), sendo também proibida a sua circulação à exceção dos casos expressamente previstos (por exemplo, deslocações por motivos de saúde, para o desempenho de atividades profissionais, a aquisição bens e serviços, para o acompanhamento de menores e assistência a pessoas vulneráveis e vítimas de alguns crimes, para a participação em ações de voluntariado, para o desempenho de atividade física, passeio dos animais de companhia, etc.);

iv) Limitação à circulação no período da Páscoa, sendo proibida a circulação dos cidadãos para fora do concelho de residência habitual no período compreendido entre as 00:00h do dia 9 de abril e as 24:00h do dia 13 de abril, salvo motivos de saúde ou urgência, bem como para o exercício de atividades profissionais.

v) Dever de adoção do regime de teletrabalho, sempre que as funções o permitam;

vi) Dever de encerramento de várias instalações e estabelecimentos (elencados no Anexo I do Decreto n.º 2-B/2020, de 2 de abril);

vii) Suspensão de atividades no âmbito do comércio e retalho e da prestação de serviços (à exceção das que disponibilizem bens de primeira necessidade ou bens considerados essenciais na conjuntura atual, as quais se encontram elencadas no anexo II do Decreto n.º 2-B/2020, de 2 de abril);

viii) Encerramento de alguns serviços públicos (por exemplo, lojas do cidadão), podendo ser determinado o funcionamento de serviços públicos considerandos essenciais por despacho dos membros do Governo responsáveis pela área em casa;

ix) Proibição de realização de celebrações de cariz religioso e de outros eventos de culto e imposição, pelas autarquias locais, de um limite máximo de presenças nos funerais;

x) Possibilidade de acionamento do instituto da requisição civil para efeitos de obtenção de equipamentos de saúde;

xi) Faculdade de determinação de medidas pelos membros do Governo responsáveis pelas áreas da administração interna, defesa nacional, justiça, transportes, agricultura, mar, energia e ambiente.

  • Além destas medidas excecionais de cariz restritivo, o presente diploma visou adotar respostas mais eficientes e eficazes em matéria de arrendamento, comércio eletrónico, vendas itinerantes, aluguer de veículos de passageiros, bem como visou reforçar o papel de algumas entidades públicas (por exemplo, da Autoridade para as Condições de Trabalho).
  • Por fim, elencou um conjunto de regras de segurança e higiene a observar pelos estabelecimentos e pelos prestadores de serviços que mantenham a atividade, como imposição da adoção de uma distância mínima de 2 metros entre pessoas, a permanência do tempo estritamente necessário, a proibição do consumo de produtos no interior, a garantia de desinfeção periódica dos objetos e superfícies e o respeito pelo direito de atendimento prioritário das pessoas  sujeita a um dever especial de proteção, dos profissionais de saúde, elementos das forças de serviço e segurança, de proteção e socorro, pessoal das forças armadas e de prestação de serviço de apoio social.

II. Fiscalização e quadro sancionatório

  • Nos termos do Decreto n.º 2-B/2020, de 2 de abril, durante o período do estado de emergência, impende sobre os cidadãos e demais entidades um especial dever de colaboração, nomeadamente no cumprimento de ordens ou instruções dos órgãos e agentes responsáveis pela segurança, proteção civil e saúde pública.
  • As forças e serviços de segurança e a polícia municipal fiscalizarão as medidas excecionais e temporárias previstas no presente decreto, mediante a sensibilização da comunidade quanto ao dever geral de recolhimento, o aconselhamento à não concentração de pessoas na via pública e à dispersão de grupos superiores a 5 pessoas (salvo se pertencerem ao mesmo agregado familiar), o encerramento de estabelecimentos e atividade elencadas no Anexo I do presente decreto e a emanação de ordens legítimas com vista ao cumprimento do dever de confinamento obrigatório.
  • No entanto, apenas a violação de algumas destas medidas é expressamente cominada como crime de desobediência. Em concreto, o presente diploma determina que constitui crime de desobediência: i) a violação do dever de confinamento obrigatório; ii) a violação dos limites à circulação no período da Páscoa; iii) o não encerramento das instalações e estabelecimentos descritos no Anexo I; e iv) não suspensão de atividades e de prestação de serviços (à exceção dos previstos no Anexo II).
  • De resto, as forças e serviços de segurança e a polícia municipal aconselharão a não concentração de pessoas na via pública, o cumprimento do dever geral de recolhimento obrigatório e o acatamento da ordens e instruções emanadas pelas autoridades competentes.
  • Significa isto que os diplomas normativos que vieram determinar e executar a renovação estado de emergência apesar de terem reforçado o quadro sancionatório – ao cominar expressamente como crime de desobediência condutas que vão além da violação do dever de confinamento obrigatório (como sucedia no Decreto n.º 2-A/2020, de 20 de março) – ainda não contêm um quadro sancionatório geral pela violação do dever geral de proteção e de dever geral de recolhimento domiciliário (à exceção do estabelecido para o período da Páscoa).
  • No entanto, não podemos negar que com a renovação do estado de emergência assistiu-se a um reforço das medidas excecionais e temporárias, bem como a um agravamento do quadro sancionatório, razão pela qual não fica descartada a hipótese de reforço e a adoção de novas medidas, bem como a possibilidade de imposição de um quadro sancionatório geral na eventualidade de se registar o incumprimento das medidas decretadas.

III. Comportamentos com relevância penal e contraordenacional

Não obstante o Governo não ter aprovado, até ao momento, um quadro sancionatório geral por violação do dever geral de proteção e de dever geral de recolhimento domiciliário, existem comportamentos que, praticados no contexto do estado de emergência, podem ter relevância penal e contraordenacional.

  • Crime de desobediência:

i) A pessoa, estabelecimento ou empresa que violar i) o dever de confinamento obrigatório; ii) os limites à circulação no período da Páscoa; iii) dever de encerramento das instalações e estabelecimentos descritos no Anexo I; e iv) dever de suspensão de atividades e de pretação de serviços (à exceção dos previstos no Anexo II), incorre na prática de um crime de desobediência, punível com pena de prisão até 1 ano ou pena de multa;

ii) A violação das restantes medidas e ordens decretadas pelas autoridades competentes, como o cumprimento geral do cumprimento obrigatório, só consubstanciará crime de desobediência se a autoridade ou funcionário de fiscalização advertir o cidadão e este deliberadamente não acatar a ordem.

  • Crime de desobediência a ordem de dispersão de reunião públicaO cidadão que se encontre em situação de ajuntamento ou de reunião pública e não acate a ordem de retirada emitida por autoridade competente, incorrerá na prática de um crime de desobediência, punível com pena de prisão até 1 ano ou pena de multa.
  • Crime de propagação de doençaA pessoa infetada que tiver a intenção de contaminar outras pessoas ou se, pelo menos, souber que com a sua conduta pode contaminar outras pessoas, incorrerá num crime de propagação de doença, punível com pena de prisão até 3 anos ou pena de multa.
  • Crime de omissão de auxílioO estabelecimento ou empresa que não acatar uma ordem ou mandado legítimo das autoridades competentes, além de incorrer na prática de um crime de desobediência, poderá incorrer na prática de um crime de omissão de auxílio, por no contexto de uma situação de calamidade pública, ter colocado em perigo a vida e a integridade física de outras pessoas, o qual é punível com pena de prisão até 2 anos ou pena de multa.
  • Crime de açambarcamentoA pessoa ou empresa que ocultar a existência, em situação de notória escassez ou com prejuízo do abastecimento regular do mercado, de bens essenciais ou de primeira necessidade, como, por exemplo, medicamentos, equipamentos de proteção individual (máscaras, desinfetantes, luvas, etc.) ou recusar a venda de acordo com o usos normais da atividade, incorre na prática de um crime de açambarcamento punível com pena de prisão de 6 meses a 3 anos ou pena de multa.
  • Crime de açambarcamento de adquirenteA pessoa ou empresa que adquirir, em situação de notória escassez ou com prejuízo do abastecimento regular do mercado, de bens essenciais ou de primeira necessidade em quantidades desproporcionais às suas necessidades de abastecimento, incorre na prática de um crime de açambarcamento punível com pena prisão de até 6 meses ou de pena de multa.
  • Crime de especulaçãoA pessoas ou a empresa que vender bens a preços superiores aos permitidos pelos regimes legais ou alterar, sob qualquer pretexto ou por qualquer meio e com intenção de obter lucro ilegítimo, os preços que do regular exercício da atividade resultariam para os bens ou serviços, incorre na prática de um crime de especulação punível com pena de prisão de 6 meses a 3 anos ou pena de multa.
  • Práticas comerciais desleaisAs práticas comerciais desleais por parte das empresas nas relações com os consumidores, que possam ocorrer no contexto da crise de saúde pública, como por exemplo, técnicas de marketing enganosas e agressivas, serão objeto de fiscalização por parte da Autoridade de Segurança Alimentar e Económica (ASAE) e constituem contraordenação punível com coima variável, consoante o seu infrator seja pessoa singular ou coletiva.

 


Manuel Ferreira da Costa
Sócio

Rafaela Oliveira
Advogada Associada